domingo, 30 de novembro de 2014

Contrafação de Patente: posso alegar que não sabia da existência da patente ?

Henrique Malvar, diretor da Microsoft observa que pela legislação norte-americana, nos casos de contrafação de patentes, a parte culpada de infringir a patente da outra parte estará sujeita à triplicação de penalidades financeiras referentes a danos (normalmente as que envolvem os maiores valores), se o autor do processo convencer o júri ou juiz de que a parte acusada tinha conhecimento da patente em questão (willful infringement) conforme o 35 USC § 284[1]. Eduardo Gaban observa que também a legislação antitruste prevê o pagamento de indenizações triplicadas “treble damages” como reparação de dano por conduta concorrencial [2], o que segundo Herbert Hovencamp tem o efeito de aumentar o número de litígios.[3] A razão desta penalização triplicada seria compensar o fato de que muitas infrações são cometidas ás escondidas, de modo que pune-se pela medi dos casos que não foram a julgamento. Numa situação em que por exemplo, apenas um terço dos casos de cartéis são detectados, o risco de penalidades triplicadas desestimularia as empresas da prática ilegal. Por outro lado, se esta média de detecção de cartéis fosse de um quinto dos casos, as empresas talvez imaginassem que valeria o risco. Para Herbert Hovencamp considerando que a maior parte das ações das empresas são de acordos públicos esta regra de penalização triplicada perde seu sentido. Por causa do risco de penalidades triplicadas, muitas empresas nos EUA optam por não permitir que seus engenheiros e pesquisadores leiam patentes na busca de informações técnicas.[4] Ainda que este desconhecimento implique no risco de se “reinventar a roda” ou no de ter suas próprias patentes negadas (por tratar-se de tecnologia já pertencente do estado da técnica), Henrique Malvar chama a atenção que ainda assim muitas empresas adotam a política de proibição de leitura de patentes. As patentes tornam-se assim, com esta política, documentos que devem ser lidos apenas por advogados[5]. 

Nos Estados Unidos Global-Tech Appliances, Inc. v. SEB S.A., [6]o conhecimento de um contrafator direto de que está incidindo em contrafação ou sua intenção é irrelevante para caracterização da contrafação”.Estima-se que em apenas 4% dos casos de litígio, os réus foram considerados como conscientes da infração antes da ação (willful infringement).[7] Josh Lerner e Adam Jaffe observam que o fato de muitos casos serem decididos por pessoas não treinadas na técnica objeto de discussão faz com que muitos julgados sejam um “jogo de azar, não um processo decisório ordenado, mas um processo em que o titular da patente tem o status de cassino na qual as fichas estão lançadas em seu favor”. Questões técnicas devem ser esclarecidas pelos peritos indicados pelos juízes antes que a validade da patente seja colocada diante do júri. [8] Philip Grubb também observa que na Inglaterra o chamado “infrator inocente” que alegar desconhecimento da patente poderá ter um cálculo de pagamento de indenização reduzido. Na prática uma grande empresa terá reconhecido seu enquadramento como “infrator inocente”, particularmente para aquelas empresas que possuem seu próprio departamento para gerenciar seu portfólio de patentes.[9] Pelo Patents and Design Acts de 1923 da Inglaterra o titular de uma patente não poderá exigir indenizações de um réu acusado de contrafação quando este provar  que não tinha conhecimento nem dispunha de meios razoáveis para que tivesse conhecimento da existência da patente, ou que a marcação de produto patenteado não fosse acompanhada  do número da patente, o que impediria o réu de procurar a patente e saber qual o seu real escopo de proteção.[10]



[1] BURK, Dan L.; LEMLEY, Mark, A. The patent crisis and how the Courts can solve it. The University of Chicago Press, 2009, p.17; GRUBB, Philip, W. Patents for Chemicals, Pharmaceuticals, and Biotechnology: Fundamentals of Global Law, Practice, and Strategy; Oxford University Press, 2004, p.201
[2] GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. Saraiva:Rio de Janeiro, 2012,p.280
[3] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.713, 837/4769
[4] BURK,LEMLEY.op.cit.p.31; DRAHOS, Peter. The global governance of knowledge: patent offices and their clients. Cambrige University Press:United Kingdom, 2010, p.145
[5] MALVAR, Henrique. Aspectos da gerência de propriedade intelectual na Microsoft Research apud NETO, Armintas; PANIGASSI, Rogério. Propriedade Intelectual: o caminho para o desenvolvimento, São Paulo: Microsoft Brasil, 2005, p. 65.
[6] 131 S. Ct. 2060, 2065 n.2 (2011)
[7] BESSEN, James; MEURER, Michael. Patent Failure: How Judges, Bureaucrats, and Lawyers Put Innovators at Risk. Princeton University Press, 2008, p. 1452/3766 (kindle version)
[8] JAFFE, Adam; LERNER, Josh. Innovation and its discontents: how our broken patent system is endangering innovation and progress, and what to do about it. Princeton University Press, 2007, p. 504/5128 (kindle version)
[9] GRUBB, Philip, W. Patents for Chemicals, Pharmaceuticals, and Biotechnology: Fundamentals of Global Law, Practice, and Strategy; Oxford University Press, 2004, p.181
[10] VOJÁCEK, Jan. A survey of the principal national patent systems. New York:Prentice Hall, 1936, p.68

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Agenda do Desenvolvimento

A agenda do Desenvolvimento trata-se de uma proposta de Brasil e Argentina dentro da OMPI lançada na XXXI Assembleia Geral realizada em agosto de 2004 tendo em vista uma rediscussão do papel da propriedade intelectual sob uma ótica crítica frente as tentativas de imposição por parte dos países desenvolvidos de intensificar a aplicação de tais direitos independentemente do grau do desenvolvimento econômico do país.[1] Esta proposta foi mais tarde expandida no documento IIM/1/4, de 6 de Abril de 2005, submetido por um grupo de 14 países auto-intitulado “Grupo de Amigos do Desenvolvimento”: Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, República Dominicana, Equador, Egito, Irã, Quênia, Peru, Serra Leoa, África do Sul, Tanzânia e Venezuela [2]. A proposta inicial básica é integrar a dimensão do desenvolvimento nas políticas e na elaboração de regras sobre a propriedade intelectual de forma a conferir um nível de proteção à propriedade intelectual variável conforme o desenvolvimento econômico de cada país.

As ideias centrais da iniciativa podem ser assim resumidas: i) a propriedade intelectual não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para o desenvolvimento; ii) deve-se preservar o interesse público nas diferentes negociações na OMPI; iii) a adoção de novas regras de propriedade intelectual deve ser precedida de avaliação criteriosa dos impactos sobre políticas de desenvolvimento tecnológico, econômico e social; iv) é necessário reequilibrar a pauta de atividades da OMPI, voltada predominantemente para temas de interesse precípuo de países desenvolvidos [3]. Henrique Moraes e Otávio Brandelli destacam que a Agenda do Desenvolvimento não se trata de minar o sistema de propriedade intelectual mas de permitir aos países em desenvolvimento fazerem uso pleno das flexibilidade sde TRIPs assim como preservar tais flexibilidades, ao invés de aprofundar os mecanismos de proteção tal como propostos em acordos bilaterais TRIPs-plus.[4] Segundo Neil Nataniel: “a agenda do desenvolvimento não nega o valor das artes criativas e invenções. Mas ela insiste que a lei de propriedade intelectual deve ser colocada a serviço do desenvolvimento[5], o que significa uma rejeição da abordagem do one size fits all.

Denis Barbosa identifica no discurso de Guerreiro Ramos em setembro de 1961 na Assembléia da ONU denunciando o sistema de patente como lesivo ao desenvolvimento como sendo um marco precursor da Agenda do Desenvolvimento.[6] O documento síntese do pronunciamento de Guerreiro Ramos intitulado “O papel das patentes na transferência de tecnologia para países subdesenvolvidos” foi substancialmente modificado por emendas apresentadas pelos países desenvolvidos. [7] O texto consta consta como Apêndice VI do livro “A Redução Sociológica” escrito em 1965. A Assembléia da ONU aprovou em dezembro de 1961 uma resolução solicitando ao Secretário Geral a elaboração de um relatório sobre os efeitos das patentes nos países subdesenvolvidos[8]. O então BIRPI (organismo antecessor da OMPI) encorajado pela International Chamber of Commerce (ICC) publicou artigo em 1962 em resposta a proposta brasileira e defendendo o sistema de patentes apontando imprecisões  no texto proposto argumentando ser a Convenção de Paris “o sistema internacional de patentes mais avançado e equânime existente, levando em consideração o interesse público no uso e tratamento das patentes concedidas a estrangeiros”.[9] O UN Department of Economic and Social Affairs (DESA) publicou o relatório final em 1964 com o título “The role of patents and the tranfer of technology to developing countries”. O tema das patentes também foi abordado em um discurso no Congresso Nacional em que Guerreiro Ramos como Deputado Federal pelo PTB/RJ elogiava a criação do Grupo Executivo da Indústria Farmacêutica, que tinha como um dos seus principais objetivos “promover a substituição de importações no plano das matérias-primas destinadas à fabricação de remédios”, em um claro movimento de nacionalização da indústria.[10] Segundo Ruth Okediji esta proposta de 1961 deu início a um um estreitamento de relacionamento da OMPI com a ONU que viria a se consolidar com o acordo de 1975 em que a ONU reconhece a OMPI como agência especializada e responsável por tomar as medidas apropriadas para promoção da atividade intelectual criativa e por facilitar a transferência de tecnologia relativa a propriedade industrial aos países em desenvolvimento de modo a acelerar o desenvolvimento cultural, social e econômico destes países. [11]

A conexão entre a rejeição de patentes com o pensamento sociológico de Guerreiro Ramos não é evidente mas também não é inesperada. Guerreiro é um nacionalista-desenvolvimentista, ou seja, para ele o "desenvolvimento nacional" não deveria estar subordinado aos interesses estrangeiros. A polêmica com Florestan Fernandes da USP revela esta perspectiva a respeito do tipo de sociologia que deveria ser praticada no Brasil à época: uma sociologia acadêmica ou uma sociologia "em mangas de camisa", uma sociologia aplicada às politicas públicas de interesse nacional. Guerreiro Ramos defende a proposta de que a sociologia deve ser constituída a partir da realidade nacional, pelo desenvolvimento de uma metodologia também própria.[12] Para Guerreiro Ramos os problemas de pesquisa sociológica deveriam obedecer às necessidades impostas pelas particularidades de uma dada estrutura social e desta forma a industrialização deveria ser o principal tema da sociologia latino-americana, No II Congresso Latino-Americano de Sociologia ocorrido no início da década de 1950, Guerreiro Ramos defendia que “o trabalho sociológico deve ter sempre em vista que a melhoria das condições de vida das populações está condicionada ao desenvolvimento industrial das estruturas nacionais e regionais”[13]

Na perspectiva de Roberto Jaguaribe e Otavio Brandelli: “é importante buscar preservar as flexibilidades existentes para ajustar a proteção dos direitos de propriedade industrial à política industrial e tecnológica e ao nosso estágio de capacitação, modelo historicamente muito bem aplicado pela grande maioria dos países hoje dotados de maior competitividade. Dessa forma, a estratégia adequada parece ser a de, internamente, maximizar os benefícios da propriedade intelectual, por meio de uma disseminação mais ampla, de uma interação mais ativa com os setores de produção, acadêmico e de pesquisa, de uma maior aproximação da propriedade industrial com a política industrial e tecnológica, e externamente, de assegurar a manutenção ou ampliação dos espaços de flexibilidades existentes” [14].

A Agenda do Desenvolvimento retoma o debate em torno da revisão da Convenção de Paris iniciado pelo Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1961. Em 1979 um texto foi elaborado tomando como premissa para Revisão da Convenção de Paris que “os tratados internacionais sob competência da OMPI, em particular a Convenção de Paris, devem ser elaborados à luz dos objetivos acima, deixando o máximo de liberdade para cada país adotar medidas apropriadas no nível administrativo e legislativo consistente com suas necessidades e políticas de desenvolvimento, econômicas e sociais”.[15] A Revisão propunha então a revisão do artigo 5A da Convenção de Paris revendo a questão da exploração local das patentes, adoção de medidas para conter abusos do sistema e a relação entre licenças compulsórias (non voluntary licences) e caducidade ou revogação de patentes no sentido de facilitar a aplicação de tais medidas. Com TRIPs não somente estas propostas de flexibilização foram negadas como algumas das flexibilidades presentes na Convenção de Paris foram retiradas (TRIPs exige a concessão de patentes para produtos e processos, dotados de atividade inventiva, em qualquer área tecnológica por no mínimo vinte anos de vigência). Bodenhausen em comentário sobre a Revisão de Paris de 1967 declara que “Na área de patentes, por exemplo, a Convenção deixa os países membros inteiramente livres para estabelecer o critério de patenteabilidade, decidir se os pedidos de patente devam ou não ser examinados de modo a determinar, antes que a patente seja concedida, se tais critérios foram atendidos, se a atente deva ser concedida ao primeiro inventor ou ao primeiro depositante de uma patente, ou se as patentes devam se concedidas para produtos somente, para processos somente, ou para ambos, e em quais campos da indústria e por qual prazo”.[16]

Para Carlos Ardissone, muito embora o governo Fernando Henrique tenha se envolvido em uma disputa diplomática com os Estados Unidos entre 1997 e 2001 em torno da questão das patentes de medicamentos contra AIDS, que conduziu a Declaração de Doha em 2001, e tenha criado o Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI) assim como a Divisão de Propriedade Intelectual (DIPI) no âmbito do MRE, será somente no governo Lula que a diplomacia brasileira irá utilizar as questões de propriedade industrial de modo mais assertivo com o painel vitorioso contra os Estados Unidos na questão do algodão e as ameaças de retaliação cruzada em propriedade industrial assim como na proposição da Agenda do Desenvolvimento[17]. Se na era Fernando Henrique o papel de uma “diplomacia presidencial” ofuscava o papel do Itamaraty, no governo Lula ganhará representatividade o segmento crítico do Itamaraty presente nas formulações de Samuel Pinheiro Guimarães e outros.[18] Toda a polêmica em torno dos medicamentos da AIDS reforçou o apoio político para segmentos do governo que tinham uma cultura antipatente, não somente no setor saúde.[19]

Carlos Ardissone destaca Samuel Pinheiro Guimarães como um diplomata influente no MRE alinhado com teses desenvolvimentistas e que ganhou prestígio na era Lula. Segundo Samuel Pinheiro Guimarães: “a estratégia desenvolvimentista reconhece a importância do setor externo para a economia brasileira, mas considera que o cerne da estratégia de desenvolvimento deve ser a expansão estimulada do mercado interno e a diversificação do parque produtivo no Brasil”. È neste sentido que a estratégia desenvolvimentista destaca o papel do Estado como indutor de um desenvolvimento industrial integrado e sustentado. Mesmo o governo Juscelino que promoveu uma estratégia de industrialização focada em empresas multinacionais instaladas no país, é colocado no grupo de políticas desenvolvimentistas.[20]

Samuel Pinheiro Guimarães mostra uma postura bastante restritiva ao sistema de patentes: "o terceiro método [para restringir a concorrência] é, ao contrário, estimulado pela legislação de proteção á propriedade intelectual que, na prática, legaliza situações de monopólio temporário, sob o argumento de que tal seria necessário para estimular a inovação tecnológica e sua difusão"[21] . Segundo Samuel Pinheiro Guimarães "Os sistemas jurídicos de proteção a patentes e segredos industriais criam monopólios legais justamente para dificultar a difusão de inovações tecnológicas e para garantir que ela somente se verifique quando de interesse das empresas detentoras, em condições que lhes permitam ganhos econômicos sem o risco de novos competidores e em um momento em que essas empresas já tenham descoberto novas tecnologias mais sofisticadas"[22]. Por outro lado, Samuel Pinheiro Guimarães utiliza o número de patentes de residentes como indicador de uma política científica e tecnológica bem sucedida, o que parece contraditório com o argumento inicial[23]. A associação das patentes como entrave à difusão tecnológica é clara, no entanto, o mesmo autor reconhece que "a principal tendência do sistema interacional é a contínua aceleração do progresso científico e tecnológico"[24], ou seja, mesmo com a intensificação da proteção patentária pelos países centrais não se tem observado um recuo de desenvolvimento tecnológico destes países, pelo contrário. No entanto, ao tratar das áreas tecnológicas em que o Brasil detém conhecimento, Samuel Pinheiro Guimarães recomenda uma política para "promover o conhecimento sistemático da biodiversidade, levantar conhecimentos tradicionais e promover o registro e proteção desse conhecimento" [25], o que poderia ser feito através de patentes,[26] embora reconheça a dificuldade jurídica de tais conhecimentos se adequarem a este diploma legal. No âmbito do Mercosul, Samuel Pinheiro Guimarães destaca a necessidade de se desenvolver capacidades científicas e tecnológicas autônomas, especialmente nos mercados mais lucrativos construídos de forma monopolística por meio da exploração temporária de inovações por meio de patentes.[27]

Para Maristela Basso: “é imperativo que os países desenvolvidos assegurem que seus objetivos de política para a propriedade intelectual sejam condizentes com metas mais amplas de promoção do desenvolvimento dos países pobres. Os países em desenvolvimento não devem ser obrigados a aceitar padrões de proteção dos direitos de propriedade intelectual impostos pelos países desenvolvidos para, em troca, obterem acesso a mercados e investimentos” [28].

Em 2007 a Assembleia Geral da OMPI estabeleceu um novo comitê para implementar a Agenda, o Comitê sobre o Desenvolvimento e a Propriedade Intelectual (CDIP) com o intuito de promover medidas que assistirão os países a lidar com as práticas anti-concorrenciais relacionadas com a propriedade intelectual e examinar como melhor promover práticas de licenciamento de propriedade intelectual pró-concorrenciais [29]. Na 14ª Assembleia do Standing Committee on the Law of Patents, realizada na WIPO em janeiro de 2009, o Brasil apresentou proposta, dentro da linha de ação da Agenda para o Desenvolvimento com intuito de se rever as exceções de patenteabilidade no sentido de as tornar mais eficazes tendo em vista o interesse da sociedade em geral, citando como exemplo as dificuldades dos países em implementar as flexibilidades de Doha e licenças compulsórias efetivas em medicamentos face à falta de capacitação tecnológica dos países pobres. O texto proposto, contudo, não avança em detalhar que mudanças seriam estas [30]. Durante a reunião de novembro de 2010 as discussões para coordenar os instrumentos para implementação das 45 recomendações da Agenda do Desenvolvimento aprovadas em 2007 chegaram a um impasse[31]. Estas recomendações abrangem ações que tratam de assuntos como:

i)              assistência técnica (uso de medidas como licenças compulsórias e outras flexibilidades para coibir abusos dos direito de propriedade intelectual),

ii)             normatização, flexibilidades, políticas públicas e domínio público ( adoção de medidas que aumentem direito de PI devem ser precedidas por avaliações de impacto para melhor instruir os países dos riscos envolvidos),

iii)            transferência de tecnologia e práticas anticompetitivas (medidas que permitam aos países em desenvolvimento a abssorção de tecnologia por exemplo pelo aumento do uso da informação tecnológica contida nos docmentos de patentes),


iv)            questões institucionais e de governança da OMPI (adequando o papel da OMPI em atingir os objetivos do Milênio estabelecidos pela ONU em especial ao sexto objetivo que trata do combate a AIDS, malária e outras doenças[32] e aumentando a participação de ONGs na área de saúde e software até então ausentes dos debates da OMPI)[33].

Para Keith Maskus muitas das recomendações da Agenda do Desenvolvimento são vagas: “a probabilidade que tais recomendações venham a no final das contas levar a um compromisso multilateral de modo a permitir um uso extensivo  das regulações flexíveis em propriedade intelectual  é limitada, na melhor das hipóteses [...] Muitos países em desenvolvimento precisam investir fortemente em políticas de desenvolvimento complementares que são mais importantes do que reformas no sistema de propriedade intelectual”. Keith Maskus identifica o motivador das atuais propostas de reforma como  remanescentes da chamada Nova Ordem Econômica Internacional (NIEO) proposta nos anos 1980 e interrompida com o Acordo de TRIPs. O argumento de que tal política se justificaria no exemplo do passado de países como Estados Unidos, Japão e Coreia que alavancaram seu desenvolvimento com um sistema de propriedade intelectual fraco, não leva em conta, segundo Keith Maskus, o contexto histórico destas experiências. Estas experiências do passado foram acompanhadas de políticas públicas que estimulavam a poupança interna, altas taxas de investimento, administrações públicas competentes e consideráveis investimentos em capital humano (educação) e infraestrutura industrial: “estas características podem não estar presentes de forma adequada em muitos países em desenvolvimento hoje, sugerindo que uma política agressiva de fracos direitos de propriedade intelectual pode produzir pouco efeito na melhoria da inovação doméstica ou no encorajamento da transferência de tecnologia”.[34]

Escrevendo em 2007, Nuno Carvalho destaca alguns avanços até então alcançados pela Agenda do Desenvolvimento tais como a assistência técnica da OMPI, o estabelecimento de fundos financeiros, a preparação de estudos para se avaliar o impacto da propriedade intelectual, mas pouco se avançou quanto aos aspectos estruturais do sistema: “A agenda para o desenvolvimento foi absorvida pela rotina operacional da estrutura burocrática da OMPI e se transformou num número maior de reuniões internacionais, de seminários, de cursos, só isso. O erro era de concepção, pois os proponentes da agenda para o desenvolvimento não sabiam exatamente o que fazer do sistema multilateral de propriedade intelectual. Policy takers não fazem política, apenas a importam. Na hora em que lhes foi dado um fórum para apresentar propostas de policy making, não sabiam exatamente o que apresentar. A agenda para o desenvolvimento estava, desde o princípio, condenada a ter uma importância muito reduzida. Isto por três razões: (a) os países que a propuseram (Brasil e Argentina, com o apoio subsequente de mais doze países em desenvolvimento) não tem muita experiência prática no uso da propriedade industrial, especialmente no campo das patentes [...] (2) os países com experiência efetiva (alguns países industrializados) não participaram ativamente dos debates [...] 3) aqueles mesmos países que agora queriam colocar a propriedade intelectual a serviço do desenvolvimento, em 1994, ao fim da Rodada do Uruguai, colocaram-na ao serviço do acesso a mercados estrangeiros” [35]. Coenraad Visser também concorda com a falta de objetividade prática nas medidas efetivas a serem adotadas numa política que se pretenda promover a transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento: “a verdade permanece de que a maior parte dos delegados dos países em desenvolvimento presentes nas reuniões dos Comitês são membros dos corpos diplomáticos e não são versados em propriedade intelectual”.[36]

Para Nuno Carvalho a proposta original de Brasil e Argentina: “deveria criar-se um novo órgão subsidiário na OMPI para considerar que medidas devem tomar-se para que o sistema de propriedade intelectual garanta uma transferência eficaz da tecnologia para os P&D, tal como já se fez noutros fórums, como a OMC e a UNCTAD. Entre outras medidas, consideramos especialmente interessante a criação de um regime internacional em virtude do qual se promova o acesso por parte dos P&D aos resultados de pesquisas financiadas com fundos públicos nos PD. Um regime desse tipo poderia materializar-se num Tratado sobre o Acesso aos Conhecimentos e à Tecnologia[37]. A Recomendação 29 previa: “Incluir no mandato de um órgão adequado da OMPI debates sobre transferência de tecnologia em matéria de PI”, no entanto pouco se avançou em matéria de transferência de tecnologia dos países ricos para os países em desenvolvimento. O Tratado de Marrakesh de julho de 2013 que flexibiliza os direitos autorais para facilitar o acesso de deficientes visuais a ter acesso a trabalhos já publicados se constitui um dos primeiros resultados efetivos da Agenda do Desenvolvimento.[38]

Christopher May e Susan Sell são céticos diante da possibilidade da WIPO adotar uma agenda que contrarie os interesses das principais nações desenvolvidas uma vez que 85% de suas receitas provém de taxas pagas pelos usuários para administração dos vários tratados administrados pela Organização, entre os quais o principal é o sistema PCT. Os principais usuários destes tratados são as nações que conduziram a pressão política para a adoção de TRIPs e o reforçamento dos direitos de propriedade intelectual. Ademais, observam os mesmos autores, outras agências das Nações Unidas tiveram seu papel político esvaziado neste debate. O UNCTAD criado em 1964, como alternativa ao GATT, no passado constituiu um importante local de discussão política para os direitos de propriedade intelectual. A UNESCO, criada em 1945, com sua proposta de garantir o intercâmbio científico, cultural e educacional entre os povos, igualmente se ocupou da discussão dos direitos de propriedade intelectual e levou a criação do Universal Copyright Convention em 1952 como alternativa à Convenção de Berna.[39] Muitos países da América Latina que não eram membros da Convenção de Paris faziam parte desta acordo no âmbito da UNESCO.[40]

Tanto o papel do UNCTAD como da UNESCO na discussão da propriedade intelectual foram esvaziados com a adoção de TRIPs. Nesse sentido, Christopher May e Susan Sell entendem que o papel da OMPI se coloca mais numa orientação técnica do que propriamente política. Peter Drahos, na mesma argumentação, observa que os representantes enviados para reuniões junto à OMPI possuem um perfil muito mais técnico do que político, muitas vezes treinados por programas da própria Organização: “a caracterização da OMPI como uma organização essencialmente técnica paga uma dívida para com os países desenvolvidos desejosos de avançar numa agenda de harmonização, elevando os padrões de proteção da propriedade intelectual e de enforcement. Questões políticas são deixadas de lado, as dicussões se limitam a refinamentos dos tratados internacionais relevantes”.[41]

Eduardo Gaban ao descrever os esforços da UNCTAD na avaliação dos impactos das práticas comerciais restritivas à livre concorrência internacional que levou a publicação em 1980 da Resolução 35/63 referente a um Código de Conduta sobre Práticas Comerciais Restritivas (CPR)[42] e em 1985 com a elaboração de um Draft International Code of Conduct on the Transfer of Technology[43], observa que este trabalho tem sido de pouco resultado em termos de meios efetivos de implementação.[44] Em 1 de maio de 1974 a Assembleia Geral das Nações Unidas já havia aprovado pela Resolução 3202 um Programa de Ação para o estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NIEO) que da mesma forma previa um código de conduta regulando as transferências de tecnologia.[45] Ruth Okediji argumenta que o fracasso destas negociações em torno de um código de conduta de transferência de tecnologia dos países centrais aos países em desenvolvimento ocorreu por terem tomado como premissa que o sistema de PI seria o articulador deste movimento, quando a inovação muitas vezes ocorre sem que o sistema de patentes desempenhe um papel central, especialmente em setores onde as barreiras de entrada dadas pela estrutura de mercado já impõe restrições de acesso que tornam desnecessário o uso de patentes.[46]


Alberto Guerreiro Ramos [47]




[1] Proposal by Argentina and Brazil for the Establishment of a Development Agenda for WIPO, http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=31737
[2] JAGUARIBE, Roberto; BRANDELLI, Otávio. Propriedade intelectual: espaços para os países em desenvolvimento. In: VILLARES, Fabio. Propriedade intelectual: tensões entre o capital e a sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 298.
[3] Agenda para o Desenvolvimento da OMPI , mar. 2007 http: //www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2007/01/agenda-para-o-desenvolvimento-da-ompi.
[4] MORAES, Henrique Choer; BRANDELLI, Otávio. The development Agenda at WIPO. In: NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.45
[5] NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.x, 5
[6] http://www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/novidades/fhcelula.pdf
[7] ARDISSONE, Carlos Maurício. Propriedade intelectual e relações internacionais nos governos Lula e FHC. Curitiba:Appris, 2013, p.279; MENESCAL, André. Mudando os tortos caminhos da OMPI ? a agenda para o desenvolvimeto em perspectiva histórica. In: RODRIGUES, Edson; POLIDO, Fabrício. Propriedade intelectual: novos paradigmas internacionais, confitos e desafios, Rio de Janeiro, Elsevier, 2007
[8] UNGA resolution 1713 (XVI) The role of patents in the transfer of technology to underdeveloped countries, december, 19, 1961 http://www.worldlii.org/int/other/UNGARsn/1961/123.pdf http://daccess-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/167/66/IMG/NR016766.pdf?OpenElement cf. ROFFE, Pedro; VEA, Gina. The WIPO development agenda in an historical and political context. In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.95
[9] OKEDIJI, Ruth. History lessons for the WIPO development agenda. In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.144
[10] In: Diário do Congresso Nacional, Seção I, Brasília, 23 out. 1964, p. 8103
[11] http://www.wipo.int/treaties/en/text.jsp?file_id=305623
[12] SCWARTZMAN, Simon. A Sociologia de Guerreiro Ramos, 1983, http://www.schwartzman.org.br/simon/gramos.htm
[13] RAMOS, Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957, p.108
[14] JAGUARIBE.op. cit. p. 285.
[15] WIPO, Document PR/DC/3, 25 junho 1979, Diplomatic Conference for the Revision of the Paris Convention: Basic Proposals, http://www.wipo.int/mdocsarchives/PR_DC_1%20to%2020_1980/PR_DC_3_E.pdf cf. ROFFE, Pedro; VEA, Gina. The WIPO development agenda in an historical and political context. In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.101
[16] Cf. ROFFE, Pedro; VEA, Gina. The WIPO development agenda in an historical and political context. In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.108
[17] ARDISSONE, Carlos Maurício. Propriedade intelectual e relações internacionais nos governos Lula e FHC. Curitiba:Appris, 2013, p.144
[18] ARDISSONE.op.cit,p.244
[19] ARDISSONE,op.cit.p.208
[20] GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na era de gigantes, Rio de Janeiro:Contraponto, 2005, p.48, 345
[21] GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na era de gigantes, Rio de Janeiro:Contraponto, 2005, p.117
[22] GUIMARÃES,op.cit.p.137
[23] GUIMARÃES,op.cit.p.133
[24] GUIMARÃES,op.cit.p.248, 312, 314
[25] GUIMARÃES,op.cit.p.223
[26] GUIMARÃES.op.cit.p.217
[27] GUIMARÃES,op.cit.p.423
[28] BASSO, Maristela. Propriedade Intelectual na era pós-OMC. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2005, p. 76.
[29] CARVALHO, Nuno. O Projeto da OMPI sobre Propriedade Intelectual e Política da Concorrência. I Conferência Internacional de Defesa da Concorrência do SBDC. São Paulo, out. 2009.
[30] Standing Committee on the Law of Patents. Fourteen Session, Geneva, jan. 2010 proposal from Brazil. http: //www.wipo.int/edocs/mdocs/patent_policy/en/scp_14/scp_14_7.pdf.
[31] The 45 Adopted Recommendations under the WIPO Development Agenda, http://www.wipo.int/ip-development/en/agenda/recommendations.html
[32] http://www.un.org/millenniumgoals/
[33] The 45 Adopted Recommendations under the WIPO Development Agenda http://www.wipo.int/ip-development/en/agenda/recommendations.html; MORAES, Henrique Choer; BRANDELLI, Otávio. The development Agenda at WIPO. In: NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.46
[34] MASKUS, Keith. The WIPO development agenda: a cautionary note.In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.169
[35] CARVALHO, Nuno. A estrutura dos sistemas de patentes e de marcas: passado, presente e futuro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 383.
[36] VISSER, Coenraad. The policy making dynamics in intergovernmental organizations, 82, Ch-Kent Law Review, 1457 (2007) cf. NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.10
[37] WO/GA/31/11, de 27 de agosto de 2004 cf. CARVALHO, NUNO. O Ambiente Internacional para a Transferência de Tecnologia em Prol do Desenvolvimento Socieoeconômico, FORTEC, Belo Horizonte, 2013
[38] http://www.wipo.int/meetings/en/doc_details.jsp?doc_id=241683
[39] http://en.wikipedia.org/wiki/Universal_Copyright_Convention
[40] ROFFE, Pedro; VEA, Gina. The WIPO development agenda in an historical and political context. In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.84
[41] MAY, Christopher; SELL, Susan. Intellectual Property Rights: a critical history. Lynne Rjenner Publishers: London, 2006, p.214
[42] PATEL, Surendra; ROFFE, Pedro; YUSUF, Abulqawi. International technology transfer: the origins and afftermath of the United Nations regulations on a draft Code of Conduct, Kluwer, 2000 cf. ROFFE, Pedro; VEA, Gina. The WIPO development agenda in an historical and political context. In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.99
[43] http://www.unctad.info/en/Science-and-Technology-for-Development---StDev/Science--Technology-on-the-UN-Agenda/UN-Programmes-and-Agencies/Compendium/Index/Themes/International-code/Transfer-of-Technology-code/
[44] GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste. Saraiva:Rio de Janeiro, 2012,p.222
[45] http://www.un-documents.net/s6r3202.htm In: OKEDIJI, Ruth. History lessons for the WIPO development agenda. In; NETANEL, Neil Weinstock. The development agenda: global intellectual property and developing countries. Oxford University Press, 2009,p.144
[46] PATEL, Surendra; ROFE, Pedro; YUSU, Abdulqawi. International technology transfer: the origins and aftermath of the United nations Negociations on a Draft Code of Conduct, Kluwer, 2001
[47] http://esperandoasmusas.files.wordpress.com/2012/10/guerreiro-ramos-2.jpg